terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Artigo do João Paulo do Jornal Estado de Minas sobre as praças em Belo Horizonte

Caderno Pensar, 18/12/2010.

Amizade e política na praça

João Paulo  

Domingo passado, aniversário de Belo Horizonte, um grande show na Praça da Estação trazia, além da comemoração dos 113 anos da capital, a chancela de celebração dos direitos humanos. Nem a chuva conseguiu tirar o calor do espetáculo, que mobilizou gente dos quatro cantos da cidade, feliz em ouvir e cantar com artistas como Chico César, Luiz Melodia, Antônio Nóbrega, Elza Soares e Lenine, além de homenagear Milton Nascimento, com direito à presença de Pablo Milanés. Teria sido tudo excelente, não fosse pelo constrangimento que cercava a praça em forma de gradis e revistas policiais. Com o argumento de defesa do patrimônio (por reivindicação do Museu de Artes e Ofícios), a praça não é mais do povo, como o céu também não é mais do condor. Policiais no chão, aviões no ar.

Os eventos na Praça da Estação são regidos por uma norma pública emanada da PBH, exigindo que se erijam cercas e se organizem filas para… frequentar a praça. Contradição em termos, praça cercada não é mais praça, mas local marcado pela exclusão e cerceamento da liberdade. Há muito desprestigiado, o Centro de Belo Horizonte vem ensaiando uma renovação, buscando estabelecer focos de atração, políticas de ocupação pela arte, incentivo à circulação de pessoas. Ao proibir os eventos no local, a prefeitura recebeu a resposta da sociedade, que se mobilizou e cobrou de volta a sua “praia”. As exigências atuais, por isso mesmo, mais parecem reação que verdadeira tentativa de proteção do local, pois foram baixadas sem qualquer debate público.
A praça precisa ser protegida, mas não pode deixar de ser praça. Qualquer norma civilizada de defesa do patrimônio e das pessoas passa pela confiança na civilidade da maioria, não pela universalização da suspeita. Vai pensar duas vezes quem, para ir a show de música popular ou a qualquer manifestação política ou religiosa (a intolerância, nesse caso, foi nitidamente dirigida às religiões populares, numa operação a mais de preconceito), precisar entrar numa fila para pegar ingresso, enfrentar um funil de grades, passar por revista e ficar impedido de sair, sob a pena de repetir todo o processo. A praça cercada é um apelo ao sedentarismo cidadão: fique em casa, cada um na sua.

Há muitas formas de conter a destruição do patrimônio e de garantir segurança às pessoas. Além da tecnologia existente, em termos de informação e inteligência não inventaram nada melhor que educação para conter os impulsos destrutivos. Impedir ou dificultar o acesso a espaços públicos é aposta na mais deseducada das atitudes: a repressão prévia. Um lugar bem preparado, com policiamento adequado, banheiros em quantidade suficiente, com bom fluxo de informação, transporte público bem planejado, suporte para quem carece de atenção especial – este é o pacote mínimo para uma política educada de quem quer receber público com dignidade e atenção. Sobretudo se o visitante é o dono da casa.

Casa e rua
Há um sentido a mais nessa história. A praça se tornou, desde a Revolução Francesa, a mãe de todas as insurreições libertárias, o solo da liberdade. A praça simboliza, na escala da sociedade, o que a casa significa no âmbito da família. O lar é o território da individualidade, a praça é o endereço do social. Se é na casa que se estabelece boa parte das relações afetivas mais íntimas, é ao ar livre que se dá o jogo da amizade e da política. Precisamos de amigos como precisamos de bons políticos, sem a praça corremos o risco de não encontrar nenhum dos dois: a amizade se privatiza e os políticos parecem não nos dizer respeito. A praça não é apenas confluência de ruas, mas de afetos que escapam à dimensão do indivíduo.

Podemos entender essa dicotomia como a separação entre dois tipos de elos que aproximam os homens. Há o elo forte da amizade, que se dá pela identidade, confiança, permanência. Há o elo fraco da política, medido pela necessidade de representação, pelo partilhamento de interesses comuns, pela impermanência dos desejos. Não há sociedade sem amigos e sem política. O ideal é que os dois elos sejam intercalados na corrente da vida: há momentos para a amizade (que sustenta nossos valores) e tempo para a política (que permite a vigência de valores comuns).

Outra forma de entender a importância de uma praça franqueada e livre é se voltar para os diálogos que são travados em seus bancos e espaços. Há a conversa dura e existe a conversa mole. A primeira atende aos projetos universais, aos grandes temas, aos negócios da sociedade. O lugar da conversa dura pode ser o parlamento, a entidade de classe, o sindicato, a universidade. Mas não podemos barrar a existência de um lugar para a conversa mole, para o papo que realiza outras dimensões da humanidade, que pode evoluir para a amizade e o amor. Sem conversa mole, não há sentido na conversa dura. Um mundo sem afeto não precisa de gente.

O antropólogo Roberto DaMatta vem, há muitos anos, buscando decifrar alguns aspectos do nosso jeito de ser brasileiro. Para ele, uma boa forma de se aproximar da alma do nosso povo é compreender sua ambiguidade essencial: somos sempre dois, um da casa e outro da rua. Há uma moral para cada terreno. Somos livres, permissivos e alegres na rua; exibimos a carranca, o senso de repressão e o convencionalismo em casa. O interessante, ressalta DaMatta, é que não se trata de esquizofrenia, mas de comportamento funcional, que mora dentro da mesma subjetividade. O brasileiro é de esquerda na rua e de direita em casa.

Sem querer extrapolar a rica hermenêutica psicológica do antropólogo, podemos pensar que fechar as ruas ao povo é uma forma tornar a sociedade mais conservadora. Conversar na praça (ir a shows, comícios e cultos) é comportamento de esquerda. Pedir carteirinha e fazer corredor polonês é atitude reacionária. Usando as palavras com poesia, podemos dizer que o belo-horizontino tem alma de esquerda e que a PBH tem atitudes afetivas de direita.

Talvez seja a hora de os manifestantes que protestaram contra o fechamento da Praça da Estação voltarem à cena, com sua anarquia e saudável conversa mole. É desse tipo de papo que estamos precisando. O risco maior pode ser a vitória da conversa dura e da lei dura em todas as praças da cidade. Aí, mais que cerceada, vamos ter uma cidade triste.

In: Jornal Estado de Minas. Caderno Pensar, p. 2 – Sábado, 18 de dezembro de 2010. 

Um comentário:

  1. Feliz 2010, com muita harmonia e Paz
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